Saturday, July 30, 2005

NOSSA ENTREVISTA: PROF. DR. FLÁVIO DOS SANTOS GOMES

Flávio Gomes, professor do IFCS desde 1998, carioca nascido em 06/03/1964. Foi estudante de Ciências Sociais no IFCS de 1986 a 1990.

- Qual foi a sua formação e vida acadêmica?

Ingressei no IFCS em 1986 depois de várias tentativas de passar no vestibular, especialmente para uma universidade pública. Tive rápidas passagens na SUAM e na Universidade Santa Úrsula. Acabei também me graduando em História na UERJ em 1990. Minha trajetória universitária foi intercalada inicialmente com trabalho. Em 1986 fazia graduação e trabalhava expediente integral no comércio. Como o curso de Ciências Sociais no IFCS era só diurno tentava aproveitar ao máximo as disciplinas nos horários das sete às 8:40, bem cedinho ou então das 12 as 13:40 na hora do almoço.

- O sr. conseguiu fazer o curso rápido bem rápido?

Não podia mais perder tempo. Foram cinco tentativas de vestibulares (a primeira em 1982, quando terminara o segundo grau) e depois tinha passado pelo Exército entre 1982 e 1983. Demorar tanto tempo para entrar acabou se transformando numa vantagem pois sabia bem o que queria. Entre 1987 a 1989 consegui uma bolsa de Iniciação Científica do CNPq (teve como orientador o professor Lincoln de Abreu Penna, hoje aposentado) e pude abandonar o emprego no comércio. Foi uma transformação. Almoçava no "bandejão" do CACO (Faculdade de Direito da UFRJ na praça da República) e ficava em tempo integral em bibliotecas e arquivos.

- Como o sr. avalia a entrada na Universidade Pública nos últimos cinco anos – em maior número em termos comparativos com outras épocas comparativamente -- de alunos afrodescendentes e filhos de operários na Universidade?

Ainda são poucos mas é um processo muito importante. No caso do IFCS o curso noturno possibilitou tal cenário. É só avaliar as diferenças – em termos de perfis dos alunos e trajetórias -- do curso diurno com aquele noturno. Eis aí – com o curso noturno – mais uma política pública de inclusão. E isso nada tem haver com falta de qualidade ou a piora do nível. A questão é disponibilizar a biblioteca até mais tarde, bolsas e outros incentivos para mobilizar todos os alunos em tempo integral. A dificuldade de acesso está também representada pelo sistema atual de vestibular. Isso foi transformado numa verdadeira indústria (que se espalhou para várias regiões) com cursinhos preparatórios e disputas entre escolas no final dos anos 70 até meados dos anos 90. E isso – pouca gente fala – nada representou em termos de melhoria de ensino de segundo grau. Por mais paradoxal que seja, a exigência do vestibular não significou melhoria do ensino de segundo grau. Pelo contrário, a pressão foi tanta que além de cursinhos se expandiram as universidades particulares. Em termos gerais, o ensino de segundo grau e terceiro grau não acompanhou este processo em termos de investimento e tecnologia de educação. O lado mais perverso disso aconteceu com a população pobre. Não entravam na universidade pública, não tinham recursos para pagar cursos preparatórios e ainda assim acabou encontrando no ensino privado – parte do qual com baixa qualidade – o único caminho de acesso ao ensino superior.

- Ultimamante tem havido uma discussão sobre conceito de "raça" chegando a possível conclusão que o termo "racismo" é ultrapassado. Neste raciocínio sobre a miscigenação brasileira, a tese de que o preconceito social sobrepõe-se a fatores de pigmentação. Como o senhor vê essa forma de mascarar o fato do negro ser discriminado e ser a maior parte da camada pobre da população?

Para nós historiadores não é muito difícil entender, ainda que alguns esforços de explicação não sejam tão objetivos. Há vários exemplos – somente para falar do século XIX – da produção por parte de setores da elite política de uma “ideologia da desracialização”. Qual seja, não se falava abertamente em raça, mas o objetivo deliberado ou indireto era excluir os setores pobres e negros. Podia citar os exemplos dos debates sobre imigração, higienização das cidades, controle de epidemias e até mesmo reformas eleitorais. No caso das epidemias e eleições, os estudos de (Sidney) Chalhoub e Richard Graham são fundamentais. Em vários momentos da história brasileira a questão racial – em termos de tensões, expectativas e projetos políticos – estava colocada. Gladys Sabina em livro recente sobre o primeiro reinado mostra como os conflitos políticos nas ruas eram fundamentalmente raciais. Havia desde os temores generalizados de levantes escravos e do exemplo do Haiti, como a percepção política de homens negros em ascensão. Na Venezuela e Colômbia, exatamente na formação do Estado Nacional, a mesma coisa acontecia. Eram sociedades pós-coloniais com tensões políticas também informadas em termos étnicos. Estou apenas dando exemplos históricos e historiográficos de como a questão racial emerge na história do Brasil e não somente com a escravidão. A questão da miscigenação tão alardeada também era fonte de conflitos e não apenas harmonia. Basta ler alguns romances do século XIX e início do século XX. Além do mais a miscigenação não era só uma coisa do Brasil. Várias outras sociedades pós-coloniais conheceram processos e índices de miscigenação consideráreis. A questão são as narrativas sobre miscigenação no passado e no presente. O que elas evocavam e o que evocam? Quais os argumentos construídos em torno delas? E as imagens geradas? A miscigenação não é uma coisa mas sim uma relação. Com sentidos políticos resignificados. È também interessante pensar na invenção da “brancura” no Brasil do século XIX. Envolve também pensar a miscigenação e as narrativas sobre ela.

- Como poderíamos explicitar historicamente que o acesso do negro a um ensino de qualidade tem sido negado até hoje ?

Muitos insistiram que a questão era apenas econômica. Tipo os pobres sempre tiveram o acesso negado pelas elites e como os pretos são pobres, tudo se explica. Além da argumentação da escravidão com mais de três séculos. Penso que seria importante inverter os questionamentos. O significou o pós-abolição no Brasil ? Quais foram as políticas públicas republicanas ? Como as elites pensaram educação, terra, economia, urbanização, gênero e trabalho ? Estaríamos portanto de diante experiências histórias de conflitos e confrontos marcados por uma ideologia da desracialização discursiva mas com uma capacidade de exclusão fundamentalmente racializada. È hoje a sociedade brasileira onde a “raça não existe” para todos, mas se admite a existência do racismo e das desigualdades raciais, embora se discorde de políticas públicas para extingui-las. Uma imagem ainda atual sobre esta questão já aparece no século XIX na imprensa: um imenso urso que hibernando não deveria ser molestado para não acordar furioso. Falemos de racismo e de desigualdades, mas por favor não de raça ! É a pregação de muitos.

- O que o sr. pensa a respeito das previstas penalizações sobre o ato do racismo enquanto crime, e as respectivas ações do estado enquanto aparato a repressão a essa infração ? São satisfatórias ?

São caminhos. Não há muito que discutir. Sendo um crime deve ser punido. Mas acho que há questões mais complexas que devem ser enfrentas para dar fim a exclusão racial e a produção continuada das desigualdades raciais. Trata-se de uma questão do país e não apenas dos negros, afrodescendentes ou bem intencionados. Esta sempre foi uma dificuldade: transformar a questão racial numa questão nacional.

- Na academia há uma corrente teórica que trata da questão racial afirmando que embora haja racismo no Brasil o mito da democracia racial não deve ser atacado, mas mantido como uma espécie de ideal a ser alcançado. Seguindo essa linha de raciocínio afirmam movimentos que se organizam politicamente em torno da sua unidade racial para exigir direitos e combater o racismo (como o MNU, por exemplo) são equivocadas em sua metodologia pois dentro de seu discurso eles não superam a idéia de raça, que para esses "neo-freyreanos" deve ser abolida de imediato e não reafirmada para exigir direitos de cidadania e igualdade de oportunidades. O sr. concorda com eles ? Por que ?

- Minha preocupação vai muito além de rótulos ou de falsas polêmicas. Opiniões – todas – sobre a questão são importantes. Inclusive daqueles contrários as ações afirmativas. Não sou daqueles que transformam em racistas obtusos todos os que são contra tais políticas. O pior é o silêncio. A desfaçatez e o cinismo, que escondem na verdade posições de classe e status quo. Para além de algumas manipulações de dados e o desejo de polemizar em função de visibilidades duvidosas é fundamental debater a questão. Quanto as políticas e estratégias dos movimentos sociais devem ser vistas como produto da história e personagens envolvidos. Querer interpretá-los a luz da cartilha da verdade científica acadêmica é equivocado. Pelo contrário, há vários exemplos de interfaces de debates acadêmicos e movimentos sociais muito importantes. Os estudos de gênero, cultura e escravidão nos EUA e Caribe foram profundamente marcados – anos 60 e 70 -- pelos debates em torno do feminismo, pós-colonização e direitos civis. Articulou intelectuais acadêmicos, lideranças políticas, estudantes, movimentos sociais e mesmo estabeleceu uma agenda de luta e produção acadêmica que ainda está colocada com os devidos desdobramentos. A cidadania – de fato – passa por lutas sociais e um amplo diálogo. A pergunta é: onde está esta a desigualdade ? E sua história ? No sentido mais amplo possível.

INSERÇÃO DO NEGRO NO MERCADO DE TRABALHO: UM DEVER DO ESTADO

Este ano completamos 117 anos de abolição da escravatura no Brasil, e infelizmente a população negra brasileira não tem muito o que comemorar. Após mais de um século do fim do escravismo, há ainda um forte racismo estrutural vigente em nossa sociedade, que promove um abismo socioeconômico que separa negros e brancos no Brasil. Lastimavelmente ainda hoje no Brasil – a segunda maior nação negra do mundo – todos os indicadores sociais permanecem desfavoráveis aos negros (mortalidade infantil, analfabetismo, expectativa de vida, etc.); e todo esse desfavorecimento se reflete no mercado de trabalho. Não é por acaso que a renda per capita das famílias negras situa-se em torno de 40% da renda das famílias brancas; logo, a incidência de pobreza e indigência na população negra é duas a três vezes mais alta que entre os brancos; isso sem falar das taxas de desemprego, informalidade, condições de moradia, acesso a cargos de chefia, etc.

Um olhar despercebido nos dados exibidos acima pode levar o leitor à conclusão enganosa de que as disparidades apresentadas têm sua principal causa apenas nas distinções de classe, logo, elevando-se o nível de vida dos pobres resolve-se a questão dos negros. Porém analisando esses números de inferioridade social do negro e a permanência desse quadro – que se mantém quase que estático ao longo de décadas de estudo estatístico (mesmo nos períodos de prosperidade econômica) – não resta outra opção senão considerarmos que mecanismos de exclusão, baseados unicamente na cor dos indivíduos, exercem um papel determinante na divisão social do trabalho no Brasil. Pois como podemos explicar que mais de um século depois da abolição da escravatura os serviços manuais, mal remunerados e insalubres continuem sendo o lugar reservado para o negro no mercado de trabalho. Para endossar o que foi dito acima, utilizaremos o Mapa do negro no mercado de trabalho – trata-se de um estudo realizado pelo Dieese e pela Fundação Seade em 1999, por encomenda do Instituto Interamericano Sindical pela Igualdade Racial (Inspir). O objeto do estudo é a situação dos trabalhadores negros em seis capitais (São Paulo, Salvador, Recife, DF, Belo Horizonte e Porto Alegre)

Os resultados são reveladores: nas regiões pesquisadas os trabalhadores brancos recebem, em média, mais que o dobro dos negros – exceto Belo Horizonte. Negros são maioria entre os desempregados pois a duração do emprego é sempre maior para os brancos, bem como o tempo de desemprego para estes também é menor. Negros são minorias em funções de planejamento, assim como constituem maioria na força de trabalho não qualificada, alocados nas atividades de execução e de apoio em serviços gerais. Em Salvador o número de trabalhadores negros em funções não-qualificadas é quase três vezes maior que o de brancos. Negros ingressam mais cedo que os brancos no mercado de trabalho: o percentual médio de crianças negras trabalhadoras de 10 a 14 anos é de quase 15%, em Salvador esse número aumenta. Negros também são os últimos a deixar o mercado de trabalho e a jornada de trabalho do negro é de uma a duas horas maior que a do branco: 44 horas semanais contra 42. As mulheres negras recebem em torno de 30% do que recebe o homem branco – exceção do DF e de Porto Alegre. Já as mulheres brancas possuem rendimentos maiores que os homens negros – com exceção de Belo Horizonte. O número de negros ocupados com trabalhos domésticos é quase quatro vezes maior do que o número de brancos. A população negra é, também, a que menos tem acesso à serviços e é a que menos se apropria da riqueza que produz.

Muita gente pensa que essa conjuntura se dá devido às desigualdades educacionais entre as “raças”, logo, um investimento maciço em educação corrigiria tais disparidades. Infelizmente tal argumento não se justifica pois em todas as capitais pesquisadas os diferenciais de salário aumentam na medida em que aumenta a escolaridade entre brancos e negros (Op. cit, Medeiros)

O prof. Marcelo Paixão, fez um trabalho sobre o desenvolvimento humano dos negros brasileiros utilizando a mesma metodologia do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Separou assim o Brasil em dois: “Brasil dos brancos” e o “Brasil dos negros” para levantar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das duas populações. Conclusão: em nenhuma região brasileira o IDH dos negros é maior ou igual ao dos brancos. Se o “Brasil dos negros” fosse um país à parte, ele ocuparia a 108ª posição no ranking da ONU; o “Brasil dos brancos” ocuparia a 49ª posição. Lembrando que o Brasil ocupava oficialmente naquele ano a posição 74 num ranking que ia até o número 174. (Paixão, 1998). Podemos, assim, concluir que precisamos urgentemente formular um conjunto de políticas públicas voltadas exclusivamente à população negra com o objetivo de incorporá-la no mercado de trabalho.

O Presidente Lula afirmou que se eleito cumpriria todos os acordos internacionais firmados anteriormente. Pois bem, sempre é bom lembrar, que dentre tantos acordos internacionais, o Brasil também é signatário Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que trata sobre formas discriminação no mercado de trabalho – sem falar da Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da ONU. Diz o art.. 2º da Convenção 111: “Qualquer membro para o qual a presente Convenção se encontre em vigor compromete-se a formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria.”. Assim, não é nenhum absurdo que a população negra do Brasil – 45% da nação de acordo com o IBGE – exija que o governo adote políticas que ataquem frontalmente nossas discrepâncias raciais. As cotas para negros nas universidades são um importante avanço, mas não podem, de maneira alguma, serem um fim em si mesmas. Pelo contrário, as políticas de cotas devem ser endossadas com outras políticas de ação afirmativa no mercado de trabalho; pois os negros depois de formados terão mais dificuldades em conseguir emprego em relação aos brancos; e quando conseguirem receberão menos que estes, com mesma escolaridade e exercendo mesma função; terão mais problemas em assumir postos de chefia, etc.; e todos esses empecilhos só têm uma motivação: a cor de suas peles, nada mais. Os números revelam isso, e contra fatos não há argumentos.

Logo, é obrigação do governo forçar as empresas privadas a diversificarem etnicamente seus quadros de funcionários – incluindo postos de chefia, necessariamente –; emitindo certificados para empresas que pratiquem a diversidade. Dessa forma o consumidor, especialmente o negro, poderá optar de qual empresa ele vai adquirir um produto ou serviço. Empresas que recebam o tal certificado também deveriam ter preferência ao concorrer pelos processos de licitação pública. No caso do funcionalismo estatal é urgente a necessidade de uma cota mínima de 45% para negros em todos os concursos públicos. Essa cota estender-se-ia inclusive às admissão por tempo determinado e para contratação de mão-de-obra terceirizada. No tocante à reforma agrária, o governo deveria priorizar as famílias afro-descendentes na distribuição de terras. As ações afirmativas para inclusão do negro não devem parar aí, devem englobar também o alto escalão do governo; a mídia de um modo geral (lembrando que boa parte desta é concessão pública); todas as universidades públicas e privadas; devem abranger até uma reformulação nos currículos escolares visando um novo olhar sobre a importância dos negros na construção desse país, sobre suas lutas e suas contribuições culturais para formação do nosso povo.

A dívida do Estado com os negros pelos 350 anos de escravidão e mais de um século de marginalidade e exclusão após a abolição é impagável, por isso uma política pública de caráter indenizatório que vise á inclusão dos negros não é favor algum, mas uma obrigação histórica de uma nação que se pretenda democrática e justa.

Bibliografia utilizada:

MEDEIROS, C. A. Na Lei e na Raça: legislação e relações raciais, Brasil-Estados Unidos. Rio de Janeiro: DP & A , 2004.

PAIXÂO, M. Os indicadores de desenvolvimento humano como instrumento de mensuração de desigualdade étnica. Rio de Janeiro: Fase, 1998.

Por Renato Vicentini da Silva, 6º período, História/UFRJ

DEMOCRACIA RACIAL


Há duas semanas, quando efetivamente travei com meus companheiros dessa revista um debate do que seria escrever para um periódico de acadêmicos sobre racismo, concluí que a tarefa deveria ser realizada de maneira que, a priori não me deteria a nenhum tipo de debate historiográfico-muito embora seja uma publicação organizada por jovens historiadores - acerca do ideal de cientistas renomados e suas teses sobre o tipo de discriminação em questão.

O que deve então permear minhas reflexões? Ora, não é necessário ser renomado ou gênio para perceber que o tema está em evidência diuturnamente em quaisquer meios de comunicação que nos sejam minimamente acessíveis e que constantemente tem seu foco desviado por escritores que pretendem, ou criar a imagem de uma pretensa democracia racial ou, ainda, desqualificar o tema alegando impertinência devido a certo pensamento arcaico dessa instância na sociedade brasileira (Ah! Isso é coisa do passado. Hoje em dia o número de casamentos inter-raciais aumentou!).

Qual deve ser a clareza a ser atingida num tipo de debate como esse? A principal começa por assumir que toda a sociedade que utilizou mão-de-obra negra sob forma de qualquer trabalho compulsório possui resquícios de discriminação racial. Talvez alguns entendam que eu apontei para um motivo e queiram afirmar que a gênese do capitalismo, ou que as teorias raciais do famigerado século XIX (a meu ver um século sui generis) sejam o verdadeiro motivo da discriminação racial atual. Para esses desavisados, eu não desejo investigar as causas do racismo, e sim constatar que vivemos numa sociedade que o nega e que pretende trazer à tona (nem que seja a fórceps) uma forma de abordagem embasada no tipo físico brasileiro e sob forma de uma re-significação de um ator social que é o mestiço ou mulato.

E o que então os formadores de opinião tentam enfronhar no inconsciente coletivo dos brasileiros para a justificação dessa realidade? O elemento mestiço, ou mulato, antes signo da impossibilidade de avanço intelectual e culpado por todo o atraso e impureza sangüínea da sociedade brasileira, agora retorna como o símbolo de uma "brasilidade" genuína e impossibilitador de uma definição da classificação étnica do Brasil. Isto significa dizer que um elemento que era antes visto como uma existência nefasta é atualmente utilizada como ícone de um segmento social que nega toda uma construção social baseada no racismo e que representa o que seria um brasileiro em essência.

O que se deve atentar é para o perigo que representa a influência dessas idéias para as populações negras que tiveram, e ainda tem em sua esmagadora maioria, o acesso a uma educação de qualidade negada pelo Estado e que contribui muito para a exposição a uma distorção promíscua da realidade racial em que vivemos.

É muito claro que os defensores de uma ausência de racismo, ou de uma unidade fundamental étnica genuinamente brasileira têm interesse em desqualificar a discussão do tema, pois invariavelmente essa acarretará no surgimento de outras questões, como as ações afirmativas, por exemplo, quando o primeiro argumento foi o da impossibilidade de definição de quem seria o elemento negro nessa nossa sociedade.

Ora, por muito tempo pensei que cidadãos como esses que escrevessem artigos de negação de racismo fossem pessoas que embora letradas, houvessem sido doutrinadas por uma vivência que lhes pudesse tolhir de uma visão mais ampla da própria sociedade. É óbvio que quem não conseguia enxergar naquela época era eu que não havia expandido minha compreensão a ponto de perceber que artigos e reportagens que eu lia eram escritos por pessoas necessariamente instruídas e que todo aquele absurdo que estava escrito nada mais era do que a representação de um, maquiavelicamente elaborado, projeto de "genocídio estatístico" que visava negar a gigantesca representação de uma população negra buscando fazê-la acreditar que casamentos entre pessoas de diferentes etnias haviam extinguido a discriminação racial.

Um ponto que considero importantíssimo para essa discussão é o fato de que o argumento dos nem sempre conscientes, defensores de uma discriminação social e não racial não percebem que os dois tipos não são excludentes e que os indicadores sociais invariavelmente apontam para uma congruência das duas, isto é, a população negra acaba sendo a esmagadora maioria dos que são chamados de excluídos socialmente. Porém, o que novamente se percebe é que as estatísticas que "criaram" o elemento pardo acabam mostrando que cada vez mais, os negros são em menor número no Brasil e que todos são jogados imediatamente na categoria "parda" fazendo com que os negros sejam "menos excluídos" que os pardos.

Enfim, os questionamentos que, nós que somos cientistas sociais, devemos nos ater têm de vislumbrar o corpus social brasileiro não com símbolos de "raça" e sim com as suas especificidades a fim de que não sejamos coniventes com a tentativa de "extermínio" da população negra do país. A afirmação de uma identidade tipicamente nacional tem passado pela desqualificação, negação e sub-hierarquização de um sujeito social que pensa, possui representantes que não quer deixá-los ser enganados e que apenas anseia em embasar seu desenvolvimento na iminência da existência de oportunidades iguais.

Por Luiz Fernando Ventura de Souza, 6º período, História / UFRJ

RACISMO E FUTEBOL


O futebol, no seu panorama de recreação e des-rotinização, apaziguador e fonte de subsistência para inúmeros profissionais diretos ou indiretos, enfrenta hoje um antigo inimigo que transcende as suas famosas quatro linhas: o racismo. Esse velho obstáculo não é novidade, pois já existe preconceito no futebol desde a tomada do seu atual formato, que conseguiu imensa popularidade em escala mundial. Do racismo instituído no futebol, em épocas passadas, até a ascensão de práticas discriminatórias que não tem o mesmo respaldo institucional de outrora, essa movimentação animada por diversas razões, variando de sociedade para sociedade, provoca hoje uma agitação geral devido a diversos casos de ofensas, pichações e faixas, tem sido amplamente discutido em veículos de comunicação como rádio, televisão e jornais impressos.

Norbert Elias e Eric Dunning, em “Deporte y Ocio en proceso de la civilización”, propõem uma explicação sociológica para o fenômeno do esporte moderno, que se resumiria a uma prática que entre seus diversos objetivos reflete a necessidade do indivíduo de se expressar e de extravasar suas ansiedades da rotina na prática mimética do esporte, gerando um clímax oriundo de fatores como a competitividade ou a “luta fingida” do esporte que é essencial para a função social de esportes como o futebol, seja no contexto da Inglaterra moderna ou do Brasil contemporâneo. Evidentemente, dentro desse processo, individual e coletivo, há uma excitação adjunta a descarregar de tensões. Então, uma considerável hipótese é a de que atos de violência, discriminação, ou de qualquer espécie “politicamente incorreta” ou “correta” é uma conseqüência quase natural (mas não admissível) desse jogo de nervos que depende fundamentalmente de um equilíbrio dessas eventualidades psicológicas para o seu sucesso não só no ato em si, mas como no regular das participações de seus atores mais diversos (jogadores, corpo técnico, torcida, telespectadores e o público em níveis menos envolvidos) em outros ambientes “extra-campo” ou em sua repercussão na sociedade que o vivenciar.

Uma noção que se dispõe é de que passamos por um vazio político, causado pela ausência de debate entre ideologias, desde a gradual queda da URSS, da falência também gradual da saúde do Estado cubano e a abertura da China para o capital, enquanto o capitalismo ocidental ascendia como formato exemplar de modelo para as nações, como inspirou Fukuyama em sua célebre colocação de que chegamos ao fim da História. Poderia ser o racismo considerado exemplo da inquieta insatisfação popular diante desse vácuo? Ouso dizer que não, o racismo já é vivo desde outrora no nosso ideário. Quando se diz que ESTE racismo é recente no caso do esporte há um equívoco, pois ele é reincidente. Integrado a toda uma "rede", a uma cultura, a hábitos verdadeiramente viciosos, no sentido de construção de temores e rejeições nos nossos círculos. Mas dessa vez se ouve, se vê o racismo no telejornal, por causa uma rede de comunicação internacional via satélite maior que permite ouvir, ver e ler sobre o problema. Agora o racismo também é espetáculo, é um evento, é o show.

No Brasil, a expressão dessa prática (e consequentemente das suas repercussões muitas vezes ignoradas ou negligenciadas na sociedade) é tão antiga quanto a nossa conquista há 500 anos, e se apresenta multifacetada devido a nossa diversidade étnica oriunda da nossa miscelânea, onde não há torcidas atirando bananas em jogadores, entretanto a agressão que acontece de modo gritante em diferenciação de mão de obra negra das outras, com salários ou oportunidades desproporcionais; quantos técnicos negros nós temos em clubes da primeira divisão? Nenhum. Evidencia clara de negação a cargos de chefia a negros, relegados a uma posição serviçal dentro da hierarquia de trabalho. Esconde-se também na “mestiçagem racial”, que proporciona o suposto mosaico sócio-cultural que não transpõe os limites da idealização conceitual, que não ultrapassa o apartheid racial subconsciente da brincadeira pejorativa, ou da imagem branca anexada a riqueza e valores sólidos e da negra anexada a preceitos inférteis e mundanos.

No mundo futebolístico, o racismo altera seus limites e formatos desde a sua difusão em escala mundial. Podemos narrar o fenômeno ocorrido na década de 20 no Rio de Janeiro. O Vasco da Gama, clube do subúrbio de São Cristóvão, é emblemático no quadro da popularização do futebol brasileiro. O esporte, considerado uma diversão e romantizado pelas elites mais diversas da cidade, tinha entre suas regras o amadorismo. Logo, criavam-se empecilhos para a participação de jogadores que eventualmente dependessem do esporte para a sobrevivência, e como já desde o início do século passado os negros se distribuíam pela sociedade majoritariamente nas classes mais pobres. Pois então o Vasco, campeão de 1922 na 2ª divisão do campeonato carioca da Liga Metropolitana, ascendeu a 1ª divisão com um time socialmente diverso e pretenso a revolucionário não só no aspecto étnico, mas também por questões de novas técnicas de treino importadas pelo seu treinador Ramón Platero, vindo do Uruguai: o time treinava com uma constância e com uma dedicação acima dos padrões. O Vasco era um time mediano; mas devido a sua força física, arrasava os rivais no 2º tempo dos jogos. É desse período que vem o bordão “o Vasco é o time da virada”.

Pois então o time campeoníssimo de 1923, ainda com controvérsias se era invicto ou não era o Vasco da Gama (devido a um jogo com o Flamengo, que até hoje não se tem bem definido se foi empate ou vitória rubro-negra). A reação conservadora foi instantânea, com Flamengo, Fluminense, América, Botafogo e outros times apoiando a saída ou do Vasco do campeonato, ou de seus 12 jogadores acusados de profissionalismo (um mero subterfúgio, pois curiosamente sabe-se que os 12 atletas eram negros e/ou operários). José Augusto Prestes, presidente do Vasco no momento, não só recusou a saída dos atletas, como anunciou que não participaria da nova liga em formação, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos. O reencontro do Vasco com os times tradicionais só aconteceria em 37, com o chamado “clássico da paz”, entre América x Vasco, quando a profissionalização não só era inevitável (devido ao êxodo de jogadores talentosos justamente pela ausência de vínculos trabalhistas com os clubes) como já era realidade.

Hoje, inúmeros profissionais que atuam na Europa, como Juan, Roberto Carlos, Ronaldo e Adriano, que são jogadores mundialmente reconhecidos, incontestavelmente talentosos e que são chamados de macaco, que tem o seu carro pichado, que tem que controlar-se para não perder as rédeas da situação. Pensando na sua imagem, como ícones, como exemplos de sucesso e ascensão sociais honesta, geralmente considerados exemplos para a juventude por instituições como a UEFA, por exemplo. E não é de todo passível de estranhamento que campanhas de multinacionais como a Nike saiam em defesa de seus contratados e abracem até atletas que não tem conexão contratual, justamente por essa questão relevante não só no âmbito mercadológico, mas da construção ideal do sustentáculo moral da nossa comunidade. A necessidade do combate ao racismo contra o negro e o “mestiço” se divide em duas faces: uma perspectiva de combate ao anti-marketing de um produto que sempre preza o espírito esportivo do fair-play e que busca recuperar a imagem de um produto mundialmente difundido e altamente lucrativo, e a vinda do problema para os nossos pulsos ou para as nossas conversas é um avanço rumo ao fim do véu por cima de questões raciais.

"FAVELA, AHHH/ FAVELA, AHHH/FAVELA, SILÊNCIO NA FAVELA, AHHH”.

A força da prática do racismo no esporte pode ser percebida em diversos ambientes e sociedades atuais. Podemos enumerar diversos eventos que marcam diariamente o mundo do futebol em periódicos estrangeiros, como o Marca, ou Gazzetta Dello Sport. Mas curiosamente, ao longo do desenrolar do fenômeno e sua explosão no continente europeu, não é de costume da nossa historiografia ou de qualquer setor da intelectualidade partir para uma crítica a eventos de massa ocorridos há tempos e que diariamente convivem com a nossa vida. O quão comum é ouvir de torcedores de clubes mais alinhados com esferas sociais mais favorecidas e que participam desses eventos miscelâneos, em linguagem popular, que torcedores de times populares como Flamengo, ou Corinthians (para citar exemplos clássicos em grandes centros do Brasil) são as torcidas de “pobre”, ou de “crioulo”? Apesar da disparidade clara entre realidades da sociedade brasileira e da européia, assim como as suas respectivas conseqüências e particularidades da dispersão e fusão étnico-racial, é imprescindível a produção uma historiografia engajada e crítica (que não se desliga da erudição que em circunstâncias diversas é necessária) junto a nosso cotidiano a percepção de questões diárias e ás vezes imperceptíveis que não podem ser ignoradas ou confundidas com aspectos da cultura regional, e legitimar práticas e análises desse cunho é viabilizar a construção de uma estrutura que nos coordena e rege independente das nossas expectativas e projetos, acima dos nossos interesses. Não é viável, nem plausível descaracterizar e deslocar as nossas próprias vontades dentro do coletivo que gera o espectro da discriminação. A propensão ao preconceito ocorre em todos os círculos da sociedade, dos mais altos aos mais baixos, todo dia, de modo indiscriminado, e se expressa inevitavelmente em um espaço de representação e atuação política, social, e do nosso prazer diário que é o futebol.

Por Daniel Santiago Chaves, 5º período, História / UFRJ.