Saturday, July 30, 2005

RACISMO E FUTEBOL


O futebol, no seu panorama de recreação e des-rotinização, apaziguador e fonte de subsistência para inúmeros profissionais diretos ou indiretos, enfrenta hoje um antigo inimigo que transcende as suas famosas quatro linhas: o racismo. Esse velho obstáculo não é novidade, pois já existe preconceito no futebol desde a tomada do seu atual formato, que conseguiu imensa popularidade em escala mundial. Do racismo instituído no futebol, em épocas passadas, até a ascensão de práticas discriminatórias que não tem o mesmo respaldo institucional de outrora, essa movimentação animada por diversas razões, variando de sociedade para sociedade, provoca hoje uma agitação geral devido a diversos casos de ofensas, pichações e faixas, tem sido amplamente discutido em veículos de comunicação como rádio, televisão e jornais impressos.

Norbert Elias e Eric Dunning, em “Deporte y Ocio en proceso de la civilización”, propõem uma explicação sociológica para o fenômeno do esporte moderno, que se resumiria a uma prática que entre seus diversos objetivos reflete a necessidade do indivíduo de se expressar e de extravasar suas ansiedades da rotina na prática mimética do esporte, gerando um clímax oriundo de fatores como a competitividade ou a “luta fingida” do esporte que é essencial para a função social de esportes como o futebol, seja no contexto da Inglaterra moderna ou do Brasil contemporâneo. Evidentemente, dentro desse processo, individual e coletivo, há uma excitação adjunta a descarregar de tensões. Então, uma considerável hipótese é a de que atos de violência, discriminação, ou de qualquer espécie “politicamente incorreta” ou “correta” é uma conseqüência quase natural (mas não admissível) desse jogo de nervos que depende fundamentalmente de um equilíbrio dessas eventualidades psicológicas para o seu sucesso não só no ato em si, mas como no regular das participações de seus atores mais diversos (jogadores, corpo técnico, torcida, telespectadores e o público em níveis menos envolvidos) em outros ambientes “extra-campo” ou em sua repercussão na sociedade que o vivenciar.

Uma noção que se dispõe é de que passamos por um vazio político, causado pela ausência de debate entre ideologias, desde a gradual queda da URSS, da falência também gradual da saúde do Estado cubano e a abertura da China para o capital, enquanto o capitalismo ocidental ascendia como formato exemplar de modelo para as nações, como inspirou Fukuyama em sua célebre colocação de que chegamos ao fim da História. Poderia ser o racismo considerado exemplo da inquieta insatisfação popular diante desse vácuo? Ouso dizer que não, o racismo já é vivo desde outrora no nosso ideário. Quando se diz que ESTE racismo é recente no caso do esporte há um equívoco, pois ele é reincidente. Integrado a toda uma "rede", a uma cultura, a hábitos verdadeiramente viciosos, no sentido de construção de temores e rejeições nos nossos círculos. Mas dessa vez se ouve, se vê o racismo no telejornal, por causa uma rede de comunicação internacional via satélite maior que permite ouvir, ver e ler sobre o problema. Agora o racismo também é espetáculo, é um evento, é o show.

No Brasil, a expressão dessa prática (e consequentemente das suas repercussões muitas vezes ignoradas ou negligenciadas na sociedade) é tão antiga quanto a nossa conquista há 500 anos, e se apresenta multifacetada devido a nossa diversidade étnica oriunda da nossa miscelânea, onde não há torcidas atirando bananas em jogadores, entretanto a agressão que acontece de modo gritante em diferenciação de mão de obra negra das outras, com salários ou oportunidades desproporcionais; quantos técnicos negros nós temos em clubes da primeira divisão? Nenhum. Evidencia clara de negação a cargos de chefia a negros, relegados a uma posição serviçal dentro da hierarquia de trabalho. Esconde-se também na “mestiçagem racial”, que proporciona o suposto mosaico sócio-cultural que não transpõe os limites da idealização conceitual, que não ultrapassa o apartheid racial subconsciente da brincadeira pejorativa, ou da imagem branca anexada a riqueza e valores sólidos e da negra anexada a preceitos inférteis e mundanos.

No mundo futebolístico, o racismo altera seus limites e formatos desde a sua difusão em escala mundial. Podemos narrar o fenômeno ocorrido na década de 20 no Rio de Janeiro. O Vasco da Gama, clube do subúrbio de São Cristóvão, é emblemático no quadro da popularização do futebol brasileiro. O esporte, considerado uma diversão e romantizado pelas elites mais diversas da cidade, tinha entre suas regras o amadorismo. Logo, criavam-se empecilhos para a participação de jogadores que eventualmente dependessem do esporte para a sobrevivência, e como já desde o início do século passado os negros se distribuíam pela sociedade majoritariamente nas classes mais pobres. Pois então o Vasco, campeão de 1922 na 2ª divisão do campeonato carioca da Liga Metropolitana, ascendeu a 1ª divisão com um time socialmente diverso e pretenso a revolucionário não só no aspecto étnico, mas também por questões de novas técnicas de treino importadas pelo seu treinador Ramón Platero, vindo do Uruguai: o time treinava com uma constância e com uma dedicação acima dos padrões. O Vasco era um time mediano; mas devido a sua força física, arrasava os rivais no 2º tempo dos jogos. É desse período que vem o bordão “o Vasco é o time da virada”.

Pois então o time campeoníssimo de 1923, ainda com controvérsias se era invicto ou não era o Vasco da Gama (devido a um jogo com o Flamengo, que até hoje não se tem bem definido se foi empate ou vitória rubro-negra). A reação conservadora foi instantânea, com Flamengo, Fluminense, América, Botafogo e outros times apoiando a saída ou do Vasco do campeonato, ou de seus 12 jogadores acusados de profissionalismo (um mero subterfúgio, pois curiosamente sabe-se que os 12 atletas eram negros e/ou operários). José Augusto Prestes, presidente do Vasco no momento, não só recusou a saída dos atletas, como anunciou que não participaria da nova liga em formação, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos. O reencontro do Vasco com os times tradicionais só aconteceria em 37, com o chamado “clássico da paz”, entre América x Vasco, quando a profissionalização não só era inevitável (devido ao êxodo de jogadores talentosos justamente pela ausência de vínculos trabalhistas com os clubes) como já era realidade.

Hoje, inúmeros profissionais que atuam na Europa, como Juan, Roberto Carlos, Ronaldo e Adriano, que são jogadores mundialmente reconhecidos, incontestavelmente talentosos e que são chamados de macaco, que tem o seu carro pichado, que tem que controlar-se para não perder as rédeas da situação. Pensando na sua imagem, como ícones, como exemplos de sucesso e ascensão sociais honesta, geralmente considerados exemplos para a juventude por instituições como a UEFA, por exemplo. E não é de todo passível de estranhamento que campanhas de multinacionais como a Nike saiam em defesa de seus contratados e abracem até atletas que não tem conexão contratual, justamente por essa questão relevante não só no âmbito mercadológico, mas da construção ideal do sustentáculo moral da nossa comunidade. A necessidade do combate ao racismo contra o negro e o “mestiço” se divide em duas faces: uma perspectiva de combate ao anti-marketing de um produto que sempre preza o espírito esportivo do fair-play e que busca recuperar a imagem de um produto mundialmente difundido e altamente lucrativo, e a vinda do problema para os nossos pulsos ou para as nossas conversas é um avanço rumo ao fim do véu por cima de questões raciais.

"FAVELA, AHHH/ FAVELA, AHHH/FAVELA, SILÊNCIO NA FAVELA, AHHH”.

A força da prática do racismo no esporte pode ser percebida em diversos ambientes e sociedades atuais. Podemos enumerar diversos eventos que marcam diariamente o mundo do futebol em periódicos estrangeiros, como o Marca, ou Gazzetta Dello Sport. Mas curiosamente, ao longo do desenrolar do fenômeno e sua explosão no continente europeu, não é de costume da nossa historiografia ou de qualquer setor da intelectualidade partir para uma crítica a eventos de massa ocorridos há tempos e que diariamente convivem com a nossa vida. O quão comum é ouvir de torcedores de clubes mais alinhados com esferas sociais mais favorecidas e que participam desses eventos miscelâneos, em linguagem popular, que torcedores de times populares como Flamengo, ou Corinthians (para citar exemplos clássicos em grandes centros do Brasil) são as torcidas de “pobre”, ou de “crioulo”? Apesar da disparidade clara entre realidades da sociedade brasileira e da européia, assim como as suas respectivas conseqüências e particularidades da dispersão e fusão étnico-racial, é imprescindível a produção uma historiografia engajada e crítica (que não se desliga da erudição que em circunstâncias diversas é necessária) junto a nosso cotidiano a percepção de questões diárias e ás vezes imperceptíveis que não podem ser ignoradas ou confundidas com aspectos da cultura regional, e legitimar práticas e análises desse cunho é viabilizar a construção de uma estrutura que nos coordena e rege independente das nossas expectativas e projetos, acima dos nossos interesses. Não é viável, nem plausível descaracterizar e deslocar as nossas próprias vontades dentro do coletivo que gera o espectro da discriminação. A propensão ao preconceito ocorre em todos os círculos da sociedade, dos mais altos aos mais baixos, todo dia, de modo indiscriminado, e se expressa inevitavelmente em um espaço de representação e atuação política, social, e do nosso prazer diário que é o futebol.

Por Daniel Santiago Chaves, 5º período, História / UFRJ.

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