Saturday, July 30, 2005

NOSSA ENTREVISTA: PROF. DR. FLÁVIO DOS SANTOS GOMES

Flávio Gomes, professor do IFCS desde 1998, carioca nascido em 06/03/1964. Foi estudante de Ciências Sociais no IFCS de 1986 a 1990.

- Qual foi a sua formação e vida acadêmica?

Ingressei no IFCS em 1986 depois de várias tentativas de passar no vestibular, especialmente para uma universidade pública. Tive rápidas passagens na SUAM e na Universidade Santa Úrsula. Acabei também me graduando em História na UERJ em 1990. Minha trajetória universitária foi intercalada inicialmente com trabalho. Em 1986 fazia graduação e trabalhava expediente integral no comércio. Como o curso de Ciências Sociais no IFCS era só diurno tentava aproveitar ao máximo as disciplinas nos horários das sete às 8:40, bem cedinho ou então das 12 as 13:40 na hora do almoço.

- O sr. conseguiu fazer o curso rápido bem rápido?

Não podia mais perder tempo. Foram cinco tentativas de vestibulares (a primeira em 1982, quando terminara o segundo grau) e depois tinha passado pelo Exército entre 1982 e 1983. Demorar tanto tempo para entrar acabou se transformando numa vantagem pois sabia bem o que queria. Entre 1987 a 1989 consegui uma bolsa de Iniciação Científica do CNPq (teve como orientador o professor Lincoln de Abreu Penna, hoje aposentado) e pude abandonar o emprego no comércio. Foi uma transformação. Almoçava no "bandejão" do CACO (Faculdade de Direito da UFRJ na praça da República) e ficava em tempo integral em bibliotecas e arquivos.

- Como o sr. avalia a entrada na Universidade Pública nos últimos cinco anos – em maior número em termos comparativos com outras épocas comparativamente -- de alunos afrodescendentes e filhos de operários na Universidade?

Ainda são poucos mas é um processo muito importante. No caso do IFCS o curso noturno possibilitou tal cenário. É só avaliar as diferenças – em termos de perfis dos alunos e trajetórias -- do curso diurno com aquele noturno. Eis aí – com o curso noturno – mais uma política pública de inclusão. E isso nada tem haver com falta de qualidade ou a piora do nível. A questão é disponibilizar a biblioteca até mais tarde, bolsas e outros incentivos para mobilizar todos os alunos em tempo integral. A dificuldade de acesso está também representada pelo sistema atual de vestibular. Isso foi transformado numa verdadeira indústria (que se espalhou para várias regiões) com cursinhos preparatórios e disputas entre escolas no final dos anos 70 até meados dos anos 90. E isso – pouca gente fala – nada representou em termos de melhoria de ensino de segundo grau. Por mais paradoxal que seja, a exigência do vestibular não significou melhoria do ensino de segundo grau. Pelo contrário, a pressão foi tanta que além de cursinhos se expandiram as universidades particulares. Em termos gerais, o ensino de segundo grau e terceiro grau não acompanhou este processo em termos de investimento e tecnologia de educação. O lado mais perverso disso aconteceu com a população pobre. Não entravam na universidade pública, não tinham recursos para pagar cursos preparatórios e ainda assim acabou encontrando no ensino privado – parte do qual com baixa qualidade – o único caminho de acesso ao ensino superior.

- Ultimamante tem havido uma discussão sobre conceito de "raça" chegando a possível conclusão que o termo "racismo" é ultrapassado. Neste raciocínio sobre a miscigenação brasileira, a tese de que o preconceito social sobrepõe-se a fatores de pigmentação. Como o senhor vê essa forma de mascarar o fato do negro ser discriminado e ser a maior parte da camada pobre da população?

Para nós historiadores não é muito difícil entender, ainda que alguns esforços de explicação não sejam tão objetivos. Há vários exemplos – somente para falar do século XIX – da produção por parte de setores da elite política de uma “ideologia da desracialização”. Qual seja, não se falava abertamente em raça, mas o objetivo deliberado ou indireto era excluir os setores pobres e negros. Podia citar os exemplos dos debates sobre imigração, higienização das cidades, controle de epidemias e até mesmo reformas eleitorais. No caso das epidemias e eleições, os estudos de (Sidney) Chalhoub e Richard Graham são fundamentais. Em vários momentos da história brasileira a questão racial – em termos de tensões, expectativas e projetos políticos – estava colocada. Gladys Sabina em livro recente sobre o primeiro reinado mostra como os conflitos políticos nas ruas eram fundamentalmente raciais. Havia desde os temores generalizados de levantes escravos e do exemplo do Haiti, como a percepção política de homens negros em ascensão. Na Venezuela e Colômbia, exatamente na formação do Estado Nacional, a mesma coisa acontecia. Eram sociedades pós-coloniais com tensões políticas também informadas em termos étnicos. Estou apenas dando exemplos históricos e historiográficos de como a questão racial emerge na história do Brasil e não somente com a escravidão. A questão da miscigenação tão alardeada também era fonte de conflitos e não apenas harmonia. Basta ler alguns romances do século XIX e início do século XX. Além do mais a miscigenação não era só uma coisa do Brasil. Várias outras sociedades pós-coloniais conheceram processos e índices de miscigenação consideráreis. A questão são as narrativas sobre miscigenação no passado e no presente. O que elas evocavam e o que evocam? Quais os argumentos construídos em torno delas? E as imagens geradas? A miscigenação não é uma coisa mas sim uma relação. Com sentidos políticos resignificados. È também interessante pensar na invenção da “brancura” no Brasil do século XIX. Envolve também pensar a miscigenação e as narrativas sobre ela.

- Como poderíamos explicitar historicamente que o acesso do negro a um ensino de qualidade tem sido negado até hoje ?

Muitos insistiram que a questão era apenas econômica. Tipo os pobres sempre tiveram o acesso negado pelas elites e como os pretos são pobres, tudo se explica. Além da argumentação da escravidão com mais de três séculos. Penso que seria importante inverter os questionamentos. O significou o pós-abolição no Brasil ? Quais foram as políticas públicas republicanas ? Como as elites pensaram educação, terra, economia, urbanização, gênero e trabalho ? Estaríamos portanto de diante experiências histórias de conflitos e confrontos marcados por uma ideologia da desracialização discursiva mas com uma capacidade de exclusão fundamentalmente racializada. È hoje a sociedade brasileira onde a “raça não existe” para todos, mas se admite a existência do racismo e das desigualdades raciais, embora se discorde de políticas públicas para extingui-las. Uma imagem ainda atual sobre esta questão já aparece no século XIX na imprensa: um imenso urso que hibernando não deveria ser molestado para não acordar furioso. Falemos de racismo e de desigualdades, mas por favor não de raça ! É a pregação de muitos.

- O que o sr. pensa a respeito das previstas penalizações sobre o ato do racismo enquanto crime, e as respectivas ações do estado enquanto aparato a repressão a essa infração ? São satisfatórias ?

São caminhos. Não há muito que discutir. Sendo um crime deve ser punido. Mas acho que há questões mais complexas que devem ser enfrentas para dar fim a exclusão racial e a produção continuada das desigualdades raciais. Trata-se de uma questão do país e não apenas dos negros, afrodescendentes ou bem intencionados. Esta sempre foi uma dificuldade: transformar a questão racial numa questão nacional.

- Na academia há uma corrente teórica que trata da questão racial afirmando que embora haja racismo no Brasil o mito da democracia racial não deve ser atacado, mas mantido como uma espécie de ideal a ser alcançado. Seguindo essa linha de raciocínio afirmam movimentos que se organizam politicamente em torno da sua unidade racial para exigir direitos e combater o racismo (como o MNU, por exemplo) são equivocadas em sua metodologia pois dentro de seu discurso eles não superam a idéia de raça, que para esses "neo-freyreanos" deve ser abolida de imediato e não reafirmada para exigir direitos de cidadania e igualdade de oportunidades. O sr. concorda com eles ? Por que ?

- Minha preocupação vai muito além de rótulos ou de falsas polêmicas. Opiniões – todas – sobre a questão são importantes. Inclusive daqueles contrários as ações afirmativas. Não sou daqueles que transformam em racistas obtusos todos os que são contra tais políticas. O pior é o silêncio. A desfaçatez e o cinismo, que escondem na verdade posições de classe e status quo. Para além de algumas manipulações de dados e o desejo de polemizar em função de visibilidades duvidosas é fundamental debater a questão. Quanto as políticas e estratégias dos movimentos sociais devem ser vistas como produto da história e personagens envolvidos. Querer interpretá-los a luz da cartilha da verdade científica acadêmica é equivocado. Pelo contrário, há vários exemplos de interfaces de debates acadêmicos e movimentos sociais muito importantes. Os estudos de gênero, cultura e escravidão nos EUA e Caribe foram profundamente marcados – anos 60 e 70 -- pelos debates em torno do feminismo, pós-colonização e direitos civis. Articulou intelectuais acadêmicos, lideranças políticas, estudantes, movimentos sociais e mesmo estabeleceu uma agenda de luta e produção acadêmica que ainda está colocada com os devidos desdobramentos. A cidadania – de fato – passa por lutas sociais e um amplo diálogo. A pergunta é: onde está esta a desigualdade ? E sua história ? No sentido mais amplo possível.

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